A efígie do arcano V chamada de Papa, Sumo Pontífice, Sumo Sacerdote e, do início do século passado para cá de Hierofante, reúne traços comuns que levam a pistas de quem é o personagem que ocupa o mais alto cargo religioso dentro da Igreja Católica Apostólica Romana na lâmina do tarô francês mais reproduzido no século passado, o Grimaud: tiara papal, barba, cruz tríplice e luva com o sinal da cruz. Alguns detalhes são importantes – a edição da Grimaud, renomada editora francesa, consta de 1931, reprodução organizada pelo pesquisador do tarô de Marselha, Paul Marteau (que, inclusive, deu título ao grupo de baralhos franceses do mesmo estilo). No entanto, a edição original é do cartier Nicolas Conver (1760). As cartas foram colorizadas com predominância das 03 cores da bandeira francesa: azul, vermelho e branco, uma apologia ao nacionalismo francês. Tomei algumas cartas de outros baralhos como referência para a pesquisa. Vamos às pistas:
1) Do ano 1700 em diante nenhum Papa fez uso de barba. O Papa Inocêncio XII (1691-1700) foi o último a ter barba. Foi entre os séculos XVII e XVIII que a prática de barbear-se virou o padrão dominante entre os clérigos, adotada inclusive por altos prelados como o cardeal Orsini, arcebispo de Benevento – o que acabava representando um modelo a ser seguido. Logo, a figura não é de um Papa do século XVIII;
2) Tiara papal (triregnum ou trirégne, ou coroa tríplice) – os primeiros registros do uso da tiara remontam ao século VIII, sendo que sua decoração e forma se desenvolveram até meados do século XIV. O último Papa coroado a utilizar a tiara foi Paulo
VI (1963), o qual nunca mais fez uso do adereço (desde então, a mitra substituiu o objeto). Logo, não poderia ser um Papa antes do século VIII. Outro detalhe importante é que essa figura precisaria ter uma representatividade para os franceses. A tiara papal era usada no primeiro dia do pontificado de cada novo papa (na coroação) e em ocasiões especialmente solenes. Sua função original era de afirmar que o poder papal era superior ao de qualquer outro soberano da Terra. Em seu formato mais recente e consagrado, a tiara papal é feita de prata em forma de ogiva, com três coroas de ouro, indicando antiga fórmula do tríplice poder papal: “pai dos príncipes e reis, reitor do mundo e vigário de Cristo”. Cada uma das três tiaras foi sendo acrescentada gradualmente, ao longo do tempo, até formar o “trirregno”;
3) Cruz tríplice – hierofante, cruz papal ou cruz tripla é uma figura geométrica formada por uma haste vertical e três barras que cruzam a haste em um ângulo de 90°, sendo estas barras decrescentes em tamanho, conforme se aproximam da extremidade superior. O nome “hierofante” provem do grego “ίεροφαντης”, significando “o alto demonstrador da sacralidade”. A palavra provem da união de dois vocábulos gregos: “ίερος” (sagrado, santo) e “φανειν” (mostrar, manifestar, fazer visível, fazer brilhar). Esta cruz é muito usada na heráldica eclesiástica, sendo colocada nas mãos dos tenentes dos brasões papais, ou sejam, anjos de carnação que sustentam estes brasões. As três barras horizontais, tal qual as três coroas da Tiara, representam as três funções do Papa, como Sucessor de Pedro: sacerdócio, jurisdição e magistério (sacerdote, profeta e rei). Era utilizada em ocasiões especiais, principalmente na Idade Média até o século XVIII;
4) Luva pontificial (chirotecoe ou quiroteca) – o Papa, em seu ato de bênção ou de eucaristia, portava luvas com a cruz bordada, simbolizando a pureza e a chaga da crucificação na mão. Era um hábito comum em cerimônias especiais (missas pontificiais na Forma Extraordinária), tanto em seu simbolismo, quanto higiene. O frio europeu também estimulava os sacerdotes ao uso de luvas. O hábito foi desenvolvido a partir do século XIII até o Papa Paulo VI;
5) Papas franceses – até o momento, a igreja teve 18 papas franceses: Bento XII, Urbano II, Ubano IV, Bonifácio IX, Calisto II, Clemente IV, Clemente V, Clemente VI, Estêvão IX, Gregório XI, Inocêncio V, Inocêncio VI, João Paulo XXII, Leão IX, Martinho IV, Nicolau II, Silvestre II e Urbano V. Destes, os únicos barbados foram Urbano II, Inocêncio V, Inocêncio VI, Leão IX, Martinho IV e Silvestre II. O Papa da época (1760) era Clemente XIII (que não bate com a descrição);
6) Padroeiro de Marselha – São Vítor de Marselha foi um mártir cristão executado durante a perseguição de Diocleciano. É venerado como santo tanto pela Igreja Católica Romana como pela Igreja Ortodoxa. É tido como soldado da Legião Tebana. Como cristão, recusou o sacrifício aos deuses e foi torturado e executado por
trituração numa mó. Sua descrição não bate com a do arcano V;
7) Arte barroca – o ciclo que compreende as ilustrações dos baralhos franceses é o período barroco na Europa. Nesta fase, era mais comum a representação de santos, Jesus e Maria do que outros personagens.
Conclusão: analisando representações em outros baralhos franceses, a figura do arcano V se trata de São Pedro, o primeiro Papa. No entanto, os traços fisionômicos podem fazer menção a um papa francês como Urbano II, Inocêncio VI ou Silvestre II. No entanto, Pedro sempre porta as chaves da igreja. Muito provavelmente, a icônica figura é Pedro na representação barroca, como um Papa comum.
Um detalhe importante: os acólitos que acompanhavam o Papa à época eram sempre em 03. Não se engane, na figura do Marselha há 03 desses personagens, o braço lateral que surge ao lado direito da figura é o terceiro acólito. Os três podemos observar no Lombardi Triste (ilustração 2). Porém, por não entendimento desse detalhe, foi suprimido o terceiro por alguns cartiers.