“A Alquimia representa a projeção de um drama ao mesmo tempo cósmico e espiritual em termos de laboratório. A opus magnum tinha duas finalidades: o resgate da alma humana e a salvação do cosmos…”. Esse trabalho é difícil e repleto de obstáculos; a opus alquímica é perigosa. Logo no começo, encontramos o “dragão”, o espírito ctônico, o “diabo” ou, como os alquimistas o chamavam, o “negrume”, a nigredo, e esse encontro produz sofrimento… Na linguagem dos alquimistas, a matéria sofre até a nigredo desaparecer, quando a aurora será anunciada pela cauda do pavão (cauda pavonis) e um novo dia nascer, a leukosis ou albedo. Mas nesse estado de “brancura”, não se vive, na verdadeira acepção da palavra; é uma espécie de estado ideal, abstrato. Para insuflar-lhe vida, deve ter “sangue”, deve possuir aquilo a que os alquimistas denominavam de rubedo, a “vermelhidão” da vida. Só a experiência total da vida pode transformar esse estado ideal de albedo num modo de existência plenamente humano. Só o sangue pode reanimar o glorioso estado de consciência em que o derradeiro vestígio de negrume é dissolvido, em que o diabo deixa de ter existência autônoma e se junta à profunda unidade da psique. Então, a opus magnum está concluída: a alma humana está completamente integrada.”
Carl Gustav Jung: Entrevistas e Encontros, Editora Cultrix
A relação do tarô com a alquimia é largamente discutida em listas, congressos e palestras estrangeiras. Não é para menos: as alegorias que se apresentam em muitas pranchas alquímicas possuem uma sensível simetria simbólica com as lâminas do tarô. E podemos até concluir que ambas foram criadas para falar ao nosso inconsciente, como uma exposição arquetípica longe da linguagem convencional.
Entender o tarô é um trabalho desafiador. Mais ainda são as obras alquímicas. Alguns defendem a idéia de que os alquimistas desenvolviam realmente experiências químicas para obter resultados físicos; outros acreditam que se tratava de uma metáfora, que a opus era puramente interior e que o praticamente era a própria matéria prima a ser transmutada. Apesar de minha pessoa não descartar a primeira hipótese, sinto que a segunda proposta faz mais sentido, pois era comum durante a Renascença ilustrar a essência humana de forma figurada.
O tarô surgiu repentinamente na Europa, durante o final do século XIV, sem deixar vestígios concretos de sua origem. Utilizado ludicamente pelos nobres, tornou-se uma “febre” nos três séculos seguintes, disseminando-se por países como Itália, França e Espanha, principais fabricantes do baralho nessas épocas. O custo de fabricação de um baralho era muito alto, uma vez que tudo era feito manualmente (em folhas de ouro, por exemplo), sem os recursos tecnológicos.
Se fizermos um paralelo entre a época do aparecimento do tarô na Europa e a propagação das pranchas alquímicas, veremos que há uma correspondência entre as duas. É sabido também que muitos alquimistas famosos (como Nicholas Flamel, Paracelso, Robert Fludd, Cagliostro, Roger Bacon, dentre outros) mantinham estreita relação com os nobres de suas épocas, os mesmos que podiam ter acesso ao baralho. Também há uma grande “sincronicidade simbólica” entre as duas áreas, particularmente se analisarmos os baralhos clássicos (como o Visconti Sforza, por exemplo) e as pranchas do século XV. Em ambas, o estilo artístico é parecido, em suas cores e traços, além de apresentarem símbolos análogos como o rei, a rainha, o sol, a lua, estrelas, leão, anjo, esqueleto, demônio, dentre outros detalhes que valem a pena ser pesquisados e analisados.
Na Alquimia, existem três estágios originais: nigredo, albedo e rubedo divididos em sete operações fundamentais que representam a opus magnum (obra maior): calcinatio, solutio, coagulatio, sublimatio, mortificatio, separatio, coniunctio. Notemos que o tarô é formado por três grupos de sete lâminas mais o Arcano 0 ou 22, denominado Louco ou Bobo (o fole do alquimista ou alquimista iniciante). Cada estágio representa um estado da matéria no processo da transmutação para conquista do ouro filosofal. Arquetipicamente falando, podemos até arriscar uma analogia entre os estágios/operações e algumas lâminas do baralho, a partir da simbologia encontrada em cada uma delas (as figuras que acompanham os textos são provenientes de pranchas alquímicas do século XVII):
1) Calcinatio – esse é a operação primária comumente encontrada na maioria das listas de operações alquímicas. A calcinação é um processo químico que consiste em retirar água de um sólido, através de um intenso aquecimento. Logo, o elemento diretamente responsável é o fogo. O controle do fogo em relação à matéria é o primeiro passo para o alquimista ser bem sucedido em sua opus. Na simbologia, o arcano “A Força” tem estreita relação com esse estágio, já que o leão é um símbolo ígneo, e o homem que o controla (como no baralho clássico de Sforza) é análogo ao alquimista, que controla a fera.
2) Solutio – é um dos principais procedimentos da alquimia. A proposta é transformar um sólido num líquido. O sólido pode desaparecer no solvente, como se tivesse sido engolido. Para o alquimista, a solutio significava com freqüência o retorno da matéria diferenciada ao seu estado indiferenciado original – isto é, à prima matéria. Nesse caso, o arcano que tem correspondência é “A Lua”, que tem estreita relação com o elemento água, bem o mergulho dentro de si mesmo.
3) Coagulatio– refere-se, em primeiro lugar, à experiência no laboratório. É o processo de resfriamento, que leva um líquido a se solidificar. Um sólido dissolvido num solvente reaparece quando o solvente é evaporado. O elemento envolvido é a terra.
Analogamente, o arcano “O Imperador” vem representar a cristalização, materialização, o plano concreto.
4) Sublimatio – é o processo de transformação da matéria em ar, por meio de sua elevação e volitização. O elemento aqui envolvido é o ar. O termo “sublimação” vem do latim sublimis, que significa “elevado”. Isso indica que a substância se sutiliza a partir de um movimento ascendente.
O arcano que podemos corresponder é o “Pendurado” que nos reporta à sutilização da matéria pelo espírito.
5) Mortificatio/Putrefactio – essa operação marca o estágio nigredo, quando há um escurecimento da matéria. Não há nenhuma referência química quanto a essa operação, literalmente é a “morte” da matéria. A putrefactio (estado pertinente a essa operação) é a decomposição que destrói corpos orgânicos mortos. O interessante é que os alquimistas também faziam experiências com material orgânico. O arcano “A Morte” está relacionado diretamente a essa operação.
6) Separatio – basicamente é a separação dos elementos, a destilação ou extração da substância. Essa é uma operação decisiva para atingir a conclusão da opus alquímica. O impacto do processo é necessário para melhor aproveitamento da substância pura.Nesse caso, o arcano envolvido é “A Torre” que significa a quebra das estruturas para estabelecimento de uma nova ordem.
7) Coniunctio – é o ponto culminante da opus. É o encontro (casamento) de substâncias opostas para se atingir a fusão ideal para coroação do trabalho alquímico. Há uma coniunctio inferior e outra superior. Enquanto a primeira trata da união de substâncias que ainda não se encontram completamente separadas ou discriminadas, a segunda trata da realização final, a conquista suprema da opus. Na verdade, os dois processos não são distintos entre si. Os arcanos envolvidos são “Os Enamorados” para a coniunctio inferior (o casamento dos opostos) e “O Mundo” para a coniunctio superior (a perfeita integração das substâncias).
Esse é apenas um exemplo puramente ilustrativo como referência aos dois temas. Podemos ainda considerar a lâmina “O Mago” como o alquimista em seu próprio laboratório, enquanto “A Temperança” é a própria representação da Alquimia (Aleister Crowley, famoso magista do início do século XX, produziu junto à desenhista Lady Frieda Harris o Toth Tarot, onde ilustra o Arcano XIV, “A Temperança”, com o nome de “Arte”, a Alquimia).
No baralho de Wirth, vemos o Arcano “O Diabo” com a famosa frase alquímica desenhada em seus braços: “Solve et Coagula” (“dissolve e solidifica”), uma referência a Opus Alquímica.
A busca do alquimista é pelo “Ouro e pela Pedra Filosofal”, assim como a busca do tarólogo é pela consciência e sabedoria interior. Ambos estão seguindo a mesma via: a transcendência pelo mundo simbólico. Ambos trabalham diretamente com o inconsciente e se valem do “laboratório pessoal” para atingir com sucesso a opu
Bibliografia indicada:
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GILLES, Cynthia. O Tarô, uma história crítica – dos primórdios medievais à experiência quântica. Editora Pioneira. São Paulo, 1994.
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