Tomando como base os baralhos franceses editados entre o século XVI e XVIII classificados como “tarôs de Marselha”, lendo algumas obras e observando os comentários de alguns praticantes sobre a simbologia das figuras, decidi escrever esse breve artigo que tem por objetivo esclarecer uma gama de leitores. Ressalto que não se trata, apenas, de observações pessoais, mas de pesquisas baseadas na iconologia clássica e em outras obras, da mesma época, das edições desses tarôs.
O olho é um dos órgãos que mais traem o ser humano. E, na interpretação pela ótica, somos capazes de cunhar significados diversos a uma mesma imagem. Aliás, a imagem é processada de uma forma bastante complexa pelo cérebro, requerendo a intervenção da luz mais o conhecimento do observador sobre um determinado objeto.
Se um desenhista, por exemplo, não for preciso em seu traço, seu desenho poderá suscitar dezenas (quem sabe centenas) de interpretações sobre sua obra. É o que acontece com as imagens dos arcanos do Marselha ao longo dos séculos: as figuras, entalhadas (ao contrário) na madeira, perderam grande parte de sua perspectiva, causando impressões diversas nos observadores.
A reprodução, por vários artistas, de uma mesma imagem, fez com que algumas delas perdessem seus caracteres simbólicos originais, gerando especulações diversas sobre os significados e dimensões de cada arcano. Um artesão ficava incumbido de levar as matrizes xilográficas para cópia e, então, algumas delas gastas pelo uso, cobertas de tinta negra e representadas de forma duvidosas por seus artistas, permitiam, a quem iria copiá-las, dar novos ares às imagens. Ou então, um desenho tosco era reproduzido, deixando a encargo do público a interpretação deste.
Uma especulação mística tomou conta do público em função dessa nova ordem de imagens. Devo frisar que grande parte dos baralhos reproduzidos a partir dos séculos XIX e XX tiveram, como base, a linha “Marselha”. O segmento ocultista foi capaz de incrementar e redimensionar imagens simples, alçando-as ao patamar das grandes obras das civilizações perdidas (como os egípcios), destacando significados que, outrora, não pertenceriam, provavelmente, a esses arcanos. É o caso do arcano 10 (Roda da Fortuna) que, mais à frente, explicarei melhor: a imagem do rei com orelhas de asno fora substituída pela esfinge. Originalmente, as figuras no entorno da roda eram humanos metamorfoseando-se em asno ou, tão somente, o rei com orelhas de asno em seu topo.
Enumerarei algumas das mais importantes imagens que normalmente sofreram (e sofrem) distorções ao longo do tempo, gerando uma pluralidade de interpretações em torno destas:
O Louco
O Louco é uma representação do cidadão que festejava a Folli (carnaval medieval italiano). Em sua trouxa, amarrada, que fazia papel de uma espécie de ‘bate bate’, continha, trazia tão somente, moedas e guizos. Era assim que ele provocava outros transeuntes, fazendo ruídos metálicos ou mesmo atiçando os cães, como representado no arcano “sem número” que abocanha os fundilhos da veste do personagem.
O Mago
A ‘mesa’ do arcano 1, O Mago, não tem apenas três pernas. Trata-se, na verdade, de uma bancada longa (como as das feiras livres), onde outros vários vendedores ambulantes, pelotiqueiros, artistas de rua apresentavam seus números ou produtos. A mão para cima e outra para baixo apenas vem a representar o ato de distrair o público com uma das mãos, enquanto que, com a outra, fazia esconder o objeto (o ilusionista tem, por hábito, distrair a atenção do público através da prestidigitação).
A Sacerdotisa
Não há nada que prove que o arcano 2, A Sacerdotisa, trata-se da imagem da Papisa Joana: pode apenas, representar, como outras imagens arcanas, uma virtude (teologal, por exemplo), como acontece com as virtudes cardeais (Justiça, Fortaleza e Temperança).
O Imperador
O Imperador, no arcano 4, não faz um “quatro” com as pernas. Por erro de perspectiva dos antigos gravadores, as pernas sugerem essa posição, mas simplesmente estão cruzadas uma sobre a outra.
Nos tarôs modernos as pernas são desenhadas deixando, de modo claro, a indicação de que estão cruzadas
O Papa
O arcano 5, O Papa, é composto por quatro figuras – três coroinhas ou monges de costas e mais a figura central de frente. A tonsura (topo da cabeça raspada, hábito entre antigos sacerdotes) denuncia três personagens.
Os Enamorados
Há tantas especulações em torno do arcano 6, Os Enamorados, que se perdem ao longo do tempo. A imagem sugere não um triângulo amoroso, mas um jovem apresentando ao pai (sim, pai, devido à coroa de louros e tipo de veste de época) a sua namorada/noiva para o consentimento ou benção do casamento.
O Carro
O arcano 7, O Carro, não tem dois cavalos em direções opostas. Assim como as rodas da carruagem não se encontram em perspectivas, os artistas não conseguiam reproduzir cavalos de frente, na mesma direção.
O Eremita
O arcano 9, O Eremita, originalmente portava uma ampulheta para representar o tempo e não uma lanterna, posteriormente sugerido pelos artesãos franceses.
A Roda da Fortuna
O arcano 10, A Roda da Fortuna, se apresentava com um rei (Midas) no alto da engenhoca com orelhas de asno (conforme o mito) e as outras figuras, ascendendo e declinando, ora surgiam com metade do corpo humano, metade de asno. Ou, apenas, representados por vestes mais simples ou suntuosas, classes sociais ou status.
A Força
O arcano 11, A Força, sugere uma mulher sobre um leão e não o animal saindo de dentro da personagem.
A Torre
As bolinhas coloridas do arcano 16, A Torre, são apenas representações de faíscas oriundas do raio que se abate sobre a construção.
Os halo cheios de raios nos arcanos 6, em torno do Cupido (veja cima), do arcano 18, em torno da Lua, do arcano 19, em torno do Sol e do arcano 20, em torno de Gabriel arcanjo, sugerem, apenas, a emissão de luz do corpo, seja física ou espiritual.
Abaixo, à esquerda, vemos o Casamento Alquímico – Splendor Solis, atribuído a Salomon Trimosin, publicado em 1532.
Abaixo, à direita, um Serafim, tal como aparece em manuscrito medieval.
Reuni apenas alguns arcanos cujas reinterpretações são as mais gritantes. Há outros pontos a explorar, como a questão das cores e figuras geométricas, alvo de dezenas de reinterpretações (equivocadas).
Esse material tem por objetivo estimular a reflexão sobre um universo ainda desconhecido e não totalmente inexplorado, que é o simbólico.
Bibliografia
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