Um dia desses estava em aula, no curso de Psicologia, e a professora começou a comentar que “havia uma associação no Brasil de Jung com o ocultismo, esoterismo, com ‘jogos disso ou daquilo’ (entende-se tarô, astrologia e afins), com ‘coisas esquisitas’, e que isso invalidava a verdadeira intenção de Jung ao se comprometer com a ciência”. Entendi, claramente, que o recado era para mim, na tentativa de menosprezar ou diminuir a importância do meu olhar junguiano para temas ‘controversos’ (temidos) como “bruxaria, feitiçaria, satanismo, luciferianismo, vampirismo” dentre outros tantos assuntos envolvendo magia, hermetismo e “ciências ocultas”. Primeiro, devo corrigir que tal “associação” (substituemos, aqui, por ‘interesse’) não é privilégio do Brasil. Há dezenas de obras estrangeiras voltadas para os conteúdos em, pelo menos, 04 línguas. Depois, Jung tinha um interesse pela fenomenologia proporcionada pela natureza da psique e as manifestações do inconsciente (seja ele pessoal ou coletivo), pela simbologia envolvida e pelas correlações míticas em paralelo. Parece haver preconceito entre os próprios junguianos, cuja avidez em provar que Jung fora um cientista, não alcançando, de fato, o espírito inquiridor e curioso do pesquisador. É sabido que Jung sofreu inúmeras retaliações do meio acadêmico, muitas vezes acusado de místico e ocultista, e não será a primeira e nem a última vez que essa questão virá à tona.
Jung estudou temas respeitando a essência cultural e religiosa destes. Procurou nunca julgar, no máximo provocar. Mergulhou no estudo de centenas de mitos, investigou a sincronicidade através do I Ching, pesquisou sobre Alquimia, abraçou o Gnosticismo, entrou em contato com o Espiritismo, refletiu sobre os fenômenos OVNIs, presenciou fenômenos inexplicáveis à luz da ciência, tinha um verdadeiro interesse pela Astrologia e participou de ritos, in loco, de vários povos. Para ele, não importa, tudo tinha um valor simbólico carregado de forças psíquicas. Enquanto junguianos e não-junguianos não entenderem o viés pelo qual Jung se enveredou para compreender os vetores inconscientes, continuarão a resistir à realidade fenomenológica, independentemente de onde ela ocorra. Jung era filho de um pastor protestante e maçom e de uma mãe envolvida com a Teosofia e o Espiritismo. Ou seja, Jung viveu uma dicotomia de crenças, o que provavelmente estimulou sua busca por respostas na religiosidade humana.
Conhecer os mitos, lendas, ritos, cerimônias e instrumentos que envolvem temas considerados heréticos ou lúgrubes por parte de algumas religiões é fundamental para se alcançar e compreender a natureza do inconsciente. Afinal, o inconsciente é tudo aquilo que há de obscuro, temível, assombroso, diabólico e ameaçador, por sua expressão frente ao consciente, mas, também, capaz de resguardar potências, tesouros, competências, energias e criatividade inimagináveis. Se um indivíduo evita “olhar para seus próprios demônios”, corre o risco de tornar-se um. Se um junguiano não aceita as forças incompreensíveis do inconscientes em suas várias manifestações na tentativa de usar a ciência para delimitar “o que pode e o que não pode ser estudado”, essa não é uma atitude junguiana, apenas significa cumprir um “status cartesiano”. Afinal, para Descartes, aquilo que não se pode provar ou observar diretamente, não existe e deve ser desprezado. O problema é que o inconsciente é a “não-objetividade” – se traduz por imagens, metáforas, ideias, nunca é literal.
O fato de um junguiano se debruçar sobre o Hermetismo (que é uma das bases da Alquimia), sobre a bruxaria, feitiçaria, ocultismo, esoterismo, luciferianismo, satanismo, vampiros, e outros tantos temas “sombrios”, não significa que deve ser considerado um “herege” (e se assim for classificado, não faz a menor importância). Para Jung, debruçar-se sobre um rito cristão ou um rito pagão, têm a mesma importância, já que as origens que permeiam ambas cerimônias surgem das mesmas fontes primitivas, presentes no inconsciente coletivo. Jung, quando indagado se cria em Deus, afirma que “não creio, eu sei”. O saber como “fonte sagrada”, o conhecimento como “divindade”, tal como sugere a Gnose. Um junguiano deve estar livre de rótulos e ser um investigador perene, claro, sem perder de vista as premissas científicas, lembrando que depois de Jung surgiram dezenas de pós-junguianos ampliando conceitos e aprofundando investigações. Infelizmente, há pseudojunguianos no mercado que utilizam as terminologias e conceitos de forma indiscriminada para tentar validar certos assuntos (como esse negócio de “invocar o arquétipo X ou Y para ganhar poder” ou “tratar o inconsciente como algo espiritual”). A única heresia que um junguiano pode realmente cometer é não estudar a fundo suas obras, entender seus conceitos, ler os pós-junguianos e julgar o que quer que seja. Há muito “cientista” por aí que, ao deixar de olhar para seus próprios “demônios”, acaba por se assumir como um.
Giancarlo Kind Schmid (psicanalista com pós em psicologia analítica e filosofia, historiador, oraculista e simbologista).