O psicoterapeuta alemão Bert Hellinger jamais poderia supor que seu trabalho ganhasse tamanho destaque e importância mundialmente. O criador da Terapia Sistêmica ou Constelações Familiares, hoje com 91 anos, é um intenso pesquisador do comportamento humano e das teias psicossociais que nos unem, mergulhou em áreas como Teologia, Filosofia, Artes, Educação, aprofundando-se na Psicologia nas áreas de Gestalt-Terapia e Psicanálise. Ainda que voltado para a religiosidade (foi um missionário católico na África, onde aprendeu o valor da comunhão tribal), abandonou a “batina” e passou a se dedicar a outros campos psicoterapêuticos como a Análise Transacional e a Terapia Primal. Nesse pot-porri de saberes envolvendo a psique humana, percebeu que todos nós precisamos fazer as pazes com o passado para seguir em frente – e o nosso passado, naturalmente, se origina nas relações familiares.
Hellinger sabiamente estabeleceu uma metodologia capaz de romper com o círculo vicioso das relações objetivando o resgate pelo amor, aceitação e respeito: é o que nós, junguianos, chamamos de “superar uma maldição familiar” – uma série de eventos catastróficos (suicídios, falências, violências domésticas, crises conjugais, doenças congênitas, etc.) que acompanham uma ou mais ramificações de uma família há muitos anos, impedindo das gerações vindouras alcançarem a realização íntima, saúde e o sucesso em vida. A propriedade do processo é levar-nos a encarar as áreas de resistências e bloqueios, e trazer à tona os dramas em algum ponto do passado para que sejam amorosamente superados. Uma das principais contribuições de Hellinger foi apresentar-nos o entendimento sobre o campo morfogenético e as chamadas ordens do amor: Hellinger apresentou três princípios que, quando ignorados, são a causa de muitos malefícios permitindo toda espécie de sofrimentos, perdas e prejuízos numa escala individual ou coletiva: a Lei da Pertinência (Pertencimento), a Lei do Dar e Receber (Comunhão) e a Lei da Hierarquia (Ordenação Temporal) – que serão explicados na segunda parte desse texto. Discorrerei, aqui, sobre a associação entre um arcano em especial e o campo morfogenético.
As práticas envolvendo Constelações Familiares podem ser desenvolvidas sem a necessidade de trabalhos orientados (exclusivamente) em grupos. A bem da verdade, os trabalhos com outras pessoas ajudam a estabelecer uma identidade relacional e uma maior conscientização da nossa humanidade, uma vez que nos damos conta que não somos os únicos a sofrer ou conviver com certas agruras familiares ou sociais. Ou seja, o trabalho grupal nos leva mais a um olhar sensível sobre o outro, nos permitindo entender que o campo morfogenético (aquilo posso chamar de ‘matéria prima’ para ‘moldagem’ das relações pessoais ou interpessoais e que nos conecta a tudo e todos) atua como uma grande rede aproximando pessoas com dramas parecidos ou temas correlatos. O bonito é que os encontros não exigem a exposição dos participantes (pois há técnicas variadas para constelar), onde não há julgamento e nem engessamento de conceitos. Já o trabalho individual (dirigido), a terapia pode ser desenvolvida a partir da narrativa da queixa de quem se apresenta, a partir de desenhos, bonecos, qualquer objeto que possa ser útil como representador dos elementos (pessoas ou questões) envolvidos na prática (como almofadas), e também o tarô, rico em sua simbologia e imagens.
O tarô é utilizado amplamente na Europa nas práticas das Constelações Familiares. Na Espanha, em especial, 9 em cada 10 tarólogos se utilizam da técnica, afastando-se daquela visão mais divinatória das lâminas (cartas), apostando mais numa abordagem psicoterapêutica. Há livros publicados sobre o assunto e técnicas sugeridas. Como estou no início dos meus estudos e desenvolvendo correlações sem me ater, exclusivamente, à visão de outros terapeutas que já postularam sobre o tema, me permiti apresentar, aqui, uma conexão simbólica com aquilo que já absorvi dos conteúdos. Ou seja, é apenas uma reflexão simbólica advinda de insights pessoais.
O ponto de partida é compreendermos do que se trata o campo morfogenético (mórfico). Morfo vem da palavra grega morphé que significa forma; genética vem de genesis que significa origem. Esse termo foi cunhado pela primeira vez, em 1939, pelo biólogo vienense Paul Weiss (inspirado pela teoria da Gestalt de Wolfgang Koehler), desenvolvido pelo biólogo/bioquímico/parapsicólogo inglês Rupert Sheldrake, que afirma que as memórias coletivas das quais cada ser de uma espécie se alinha, refletem suas sensações, estado e natureza (na forma de informações). O termo foi adotado por Hellinger para explicitar a importância das conexões (diretas ou indiretas) entre todos nós e o mundo que nos cerca. O campo é uma espécie de teia psicossocial onde todos afetam todos, de uma maneira objetiva ou subjetiva, de acordo com as ordens sociais. Por exemplo, um cão que sabe que seu dono está chegando, um patrão problemático dificulta a boa relação entre membros de sua equipe ou quando sentimos que estamos sendo observados – a conexão subjetiva aponta para a forma como a psique nos alinha ao universo e tudo que está à nossa volta.
O campo “se comunica” de diversas vezes e sempre visa o seu reequilíbrio. Por isso, tantas malfadadas experiências humanas acabam deixando lacunas que dificultam o fluir desse campo e nos impede de seguir em frente. Podemos chamar esse campo de inconsciente coletivo, de filogenesia, e até de ‘alma grupo’. O mais importante é entendermos que o campo não está sujeito ao tempo/espaço, o que, de certa forma, nos possibilita acessá-lo a qualquer momento no resgate das memórias dolorosas para restabelecimento de uma reordenação saudável. Para tanto, abandonarmos certas posturas que envolvem a comiseração para com o outro ou mesmo o entendimento sobre o perdão é o primeiro passo. O respeito é o ponto de partida e o “sinto muito” deve ser quase que ressoado como mantra no lugar de “eu te perdoo”. E o mais importante: o campo é supremo (ele é quem comanda).
O arcano que mais me remete à ideia do campo morfogenético é o Ás de Copas. Esse arcano representa a lei do amor e, tal como se apresenta na arte do baralho Rider Waite, a taça que verte água nos remete à vida e sua gênese.
Assim como a água, elemento que está presente abundantemente na natureza, é uma representação da psique, do inconsciente, dos sentimentos e da receptividade. Percebo muito do campo aí, cuja fenomenologia seria comparada à água que facilmente se contamina. A água também tem a propriedade de se volatilizar ou se solidificar, mostrando-nos que, como o campo, é versátil e adaptável ao meio. Segundo o evolucionismo, os primeiros seres vivos sugiram no meio aquático. Passamos 9 meses dentro de uma bolsa com o chamado líquido amniótico e, assim como o planeta, nosso corpo é composto por 70-75% do precioso líquido. E a própria água se relaciona com o sangue, elemento primordial que nos liga geneticamente aos nossos ancestrais. A água que flui da taça sugere que o campo flui (verte) em todas as direções, ou seja, sustenta toda a vida. É interessante pensar que a fórmula química da água é composta por um dos elementos essenciais a todo universo: o hidrogênio, que permeia o universo. O campo morfogenético é o campo do amor, que nos sustenta e nos alimenta, e que precisa ser limpo e reordenado. Esse arcano encerra em sua simbologia a importância do campo como matéria prima da vida.
De acordo com o pesquisador sobre o assunto, Sheldrake, os campos morfogenéticos ou campos mórficos são campos que levam informações, não energia, e são utilizáveis através do espaço e do tempo sem perda alguma de intensidade depois de ter sido criado. “Eles são campos não físicos que exercem influência sobre sistemas que apresentam algum tipo de organização inerente […] centrada em como as coisas tomam formas ou padrões de organização. Deste modo cobre a formação das galáxias, átomos, cristais, moléculas, plantas, animais, células, sociedades. Cobre todas as coisas que têm formas e padrões, estruturas ou propriedades auto organizativas. Todas estas coisas são organizadas por si mesmas. Um átomo não tem que ser criado por algum agente externo, ele se organiza só. Uma molécula e um cristal não são organizados pelos seres humanos peça por peça se não que cristalizam espontaneamente. Os animais crescem espontaneamente. Todas estas coisas são diferentes das máquinas que são artificialmente montadas pelos seres humanos. Esta teoria trata sistemas naturais auto organizados e a origem das formas. E eu assumo que a causa das formas é a influência de campos organizacionais, campos formativos que eu chamo de campos mórficos. A característica principal é que a forma das sociedades, ideias, cristais e moléculas dependem do modo em que tipos semelhantes foram organizados no passado. Há uma espécie de memória integrada nos campos mórficos de cada coisa organizada. Eu concebo as regularidades da natureza como hábitos mais que por coisas governadas por leis matemáticas eternas que existem de algum modo fora da natureza.” (Sheldrake, 1981).
Os campos mórficos funcionam, tal como eu explico em meu livro, a presença do passado, modificando eventos probabilísticos. Quase toda a natureza é inerentemente caótica. Não é rigidamente determinada. A dinâmica das ondas, os padrões atmosféricos, o fluxo turbulento dos fluidos, o comportamento da chuva, todas estas coisas são corretamente incertas, como são os eventos quânticos na teoria quântica. Com o declínio do átomo de urânio você não é capaz de predizer se o átomo declinará hoje ou nos próximos 50.000 anos. É meramente estatístico. Os campos mórficos funcionam modificando a probabilidade de eventos puramente aleatórios. Em vez de uma grande aleatoriedade, de algum modo eles enfocam isto, de forma que certas coisas acontecem em vez de outras. É deste modo como eu acredito que eles funcionam. (Sheldrake, 1981).
No próximo texto, apresentarei o tema: As Ordens do Amor.
Bibliografia:
HELLINGER, Bert. Ordens do Amor (Um guia para trabalhos com Constelações Familiares). Cultrix. São Paulo. 2001.
SHELDRAKE, Rupert. A New Science of Life: the Hipothesis of Morphic Resonance. Icon Books. London. 1981.
SHELDRAKE, Rupert. O Renascimento da Natureza: o Reflorescimento da Ciência e de Deus. Cultrix. São Paulo. 1997.
RODÉS, Daniel; SÁNCHEZ, Encarna. Tarot y constelaciones familiares. Oceano Ambar. Madrid. 2009.